por Alexandre França
O
mérito maior em literatura: fazer literatura escapando da literatura. Diluir o
que corresponde, rachar o elo entre o que se coloca e o que se entende. Poderia
dizer, numa análoga compreensão de um panorama ainda incompleto, que o mesmo se
dá com o teatro: fazer teatro nas saídas de emergência que existem para tudo o
que não é teatral. Peguemos como exemplo o capítulo delirante de Ulysses
correspondente a Circe na Odisseia de Homero, onde encontramos a personagem num
surto psíquico ao se deparar com prostitutas, cafetinas e sórdidos bebuns a
ralhar sua pretensa fraca moral. Há um desvio de rota no conjunto reconhecível
de elementos formadores de um ambiente. Memória processada numa caldeira de
resíduos imaginários, onde num só tempo, nos deparamos com a mutação de
contextos e ambiências bombardeadas pelos contrastes existentes na estrutura do
que está sendo dito. A todo momento, novidades imagéticas e contextuais são
colocadas para imprimir a sensação de delírio e escapar, em certa medida, do
ambiente tradicional do que se entende por literatura (e até mesmo de um estado
delirante) – beijos falam, elementos da mitologia irlandesa aparecem ao acaso,
os afetos viram motivos para se dar corda ao mecanismo da alucinação. Ao final,
ou ao conjunto gestáltico do que nos é dado, entendemos uma nova artéria
literária pulsando fora do circuito já reconhecido. A literatura, então, se faz
pela fuga literária – pela construção de saídas de emergência da sala
higienizada da fórmula canônica.
Como
podemos perceber em uma literatura mais comercial (aqui, sem entrar no valor
que o nome literatura pode representar em alguns círculos de análise), como a
chamada auto-ajuda, por exemplo, um rosto padrão é colocado para dialogar com o
leitor. Parecido com as técnicas utilizadas por “videntes” para se parecer de
fato um vidente (perguntas genéricas, leitura facial, leitura corporal, a
utilização de temas relacionados a família, amigos, bem como sentimentos
universais – inveja, orgulho, etc, etc), o rosto exprime exatamente o limite do
que entendemos sobre literatura. E isso pode se dar, também, com uma literatura
de alto teor de pesquisa e construção. Um drama histórico, dependendo do viés
comercial em que é colocado, por mais que diga respeito a figuras existentes,
nos colocará diante de um rosto de fácil apreensão. Claro, quanto mais estranho
o rosto for, mais os enigmas se aproximam da mágica do insolúvel. Isso se dá em
diversos níveis – mas a fuga, a saída de emergência, uma hora ou outra, deve
ser criada, para que uma sala após outra seja antecipada em nossa mente na
tentativa de fuga da literatura para outra literatura. Os olhos do que ainda
não tem rosto é o princípio do ato – reconhecer que alí podem haver olhos, é o começo da caminhada.
Há
também uma fuga que se dá tangencialmente ao livro. Peguemos a frase Und alle Schiffe brücken, existente no
final do próximo capítulo da citada obra. Há, aparentemente um possível
problema com a palavra “brücken”. Muito se discutiu sobre o significado de tal
palavra deslocada de sua função em língua alemã (brücken, aqui utilizado como
um verbo, seria o plural de “ponte”). Uma das conclusões que muitos chegaram
foi a de que o autor brinca com sonoridades distintas em línguas diferentes –
broken, no inglês, quebrar, com bruke, quebrar em alemão e, finalmente, o
deslocamento final de sentido e função – brücken (pontes), utilizado como
verbo. A frase “e todo barco quebra” (und alle schiffe brechen), transforna-se,
eletrifica-se, com a brincadeira criada por Joyce ao trocar brechen por brücken
(talvez, fruto do estado de embriagues da personagem Stephen Dedalus, talvez
pura sacanagem do autor para que procuremos sentido dentro de uma obra
atravessada por furos). Uma possível tradução final – “e todo barco
quebra-pontes”, não fecha o ciclo de significados do original. Aliás,
poderíamos por durante horas buscar o alvo certo de tal interpretação. E talvez
o enigma que leva a obra a se fazer por fora de seu sistema circulatório, seja
uma forma de não-literatura se constituindo literatura em nossa cabeça. Como se
para além da relação livro-leitor-realidade, Joyce propusesse a relação
livro-leitor-realidade-virtual, quando percebemos já nos enredar numa teia de
discussões concernentes a trechos da obra, que ganham vida em foros virtuais
de aprofundamento (criando, assim, um núcleo potente na formação de uma outra
literatura, incluindo aí a acadêmica)
No
caso do teatro, o ciclo de peças dedicadas a Paulo Leminski da Companhia
Brasileira traduz no palco tanto esta fuga do corpo reconhecível do que se entende
por teatro, quanto a relação obra-público-realidade-virtual. Há, na peça “Vida”
por exemplo, o anúncio de que o texto teria sido inspirado na obra de Leminski (em
cartazes e outros materiais de divulgação) – no entanto, a peça parece trilhar
um outro percurso, ao criar uma autonomia de universo, borrando os limites
entre o estilo, a obra em si e a vida do poeta curitibano, junto ao estilo,
obra e vida das personagens colocadas no palco (e de alguns atores, como no
caso de Ranieri Gonzales, que explica em determinado momento a história de cada
uma de suas tatuagens reais espalhadas pelo corpo). Uma banda prepara um ensaio
que nunca começa e nunca acaba de verdade – estamos no espaço do não-lugar do
desdobramento virtual, de uma obra que foge a todo instante da teatralidade
fácil, criando uma nova artéria de circulação de imagens, nos levando a, de
alguma maneira, pela via da fuga, associar o ato (teatral a ponto de
transbordar as bordas do teatralmente aceitável) a Leminski e ao próprio
mecanismo do fracasso teatral que nos pede, assim como pedia o poeta, uma nova
forma de configurar o sistema.
Descartes
com Lentes faz a ousadia de encenar o proto-texto de Catatau, o romance
experimental publicado pelo poeta no ano de 1975. Densa e virtuosa, a peça (interpretada
brilhantemente por Najda Naira) carrega em seu bojo todo um núcleo de
referências que, na melhor tradição Joyceana (e é impressionante e curioso como
reconhecemos o espírito de Joyce untando as paredes da muralha monumental construída
por Leminski em seus dois únicos romances), nos leva à seara do desdobramento
off-obra. A utilização da mistura de línguas, ruídos entre sonoridades
distintas, neologismos, palavras valises, e toda uma série de recursos
Joyce-mallarmaicos, nos transporta ao confuso espaço mental de Descartes frente
a exuberância da flora e da fauna brasileira, e nos remete a essência performática
da obra em si, que, desde sempre, pretendeu furar o asfalto paradigmático da
narrativa, para dar forma a um fenômeno de outra ordem – literatura que se faz
pela via do não-literário e que agora se faz performance em toda sua potência.
Catatau, assim como Finnegans Wake, nasceu para ser falado – e mesmo neste
quesito, tanto Leminski quanto Joyce nos transfere para um outro espaço de apreensão
do texto – muito mais teatral (inclusive por não estar dentro do “teatro”) do
que solitário e literário. O não-teatral fazendo teatro, ao utilizar o texto
não-literário que, com a Companhia Brasileira, agora também, incrivelmente, se
fez literatura.